1.08.2013

Elogio do humor kamikaze


Há qualquer coisa na figura de George (Adam Sandler), um comediante de sucesso que vive sozinho numa enorme e labiríntica mansão, rodeado de ecrãs onde frequentemente se projectam imagens dele próprio, que faz lembrar Citizen Kane de Orson Welles, retrato de alguém igualmente poderoso que antagonizara muita gente ao longo da vida, no serviço do poder e do ego. Seria demagógico pretender colocar Funny People/ Gente Gira (2009) no patamar desse clássico dos clássicos, embora esta comédia kamikaze de Judd Apatow mostre ambição que em muito ultrapassa o âmbito do género. É um filme que conta várias histórias, que está repleto de personagens que deixam marca, que ao mesmo tempo homenageia o universo da stand-up comedy (são vários os comediantes que aqui fazem uma perninha, e de várias gerações), que reflecte sobre uma hipótese do que é viver o papel de celebridade, que desconstrói o artifício em que as nossas vidas assentam quando condicionadas por pequenas ou não tão pequenas vaidades e expectativas, sempre num registo de sarcasmo que gera por vezes o desconforto. Mas que tem igualmente muita graça.
A escrita de Apatow atinge neste filme um claro apogeu, apesar da montagem final (no caso a edição DVD que corresponde à minutagem da versão comercial) revelar eventuais cedências que se fazem sentir nas alterações abruptas do ritmo do filme na segunda metade. Abrem-se mesmo assim excelentes perspectivas para o novo Apatow, This is 40!, com estreia em Portugal anunciada para o final de Fevereiro.
De volta a Funny People, e a um dos seus maiores prazeres, é de realçar o trabalho com os actores recorrentes nos filmes de Judd Apatow, entre eles Seth Rogen, que o realizador continuamente promove como projecto de homem de família de que ninguém está à espera. Numa das melhores sequências de Funny People, uma antiga namorada de George (interpretada pela mulher de Apatow na vida real...), de quem este se reaproxima doze anos mais tarde, quando o comediante tem conhecimento de que sofre de uma forma rara de leucemia que o pode vir a matar (mas depois fica curado), mostra-lhe a ele e ao amigo Ira (Seth Rogen) um vídeo da filha (protagonizada por uma das filhas de Apatow na vida real...) que interpreta no palco da escola o tema Memory do musical Cats. A indiferença de George é contrastada pela comoção de Ira, que não é de todo a quem aquele momento é dirigido. Ira está ali no papel de escudeiro do humorista da triste figura (Sandler), que não merece reaver a sua princesa.
O conto de fadas moderno é outra das dimensões que se podem retirar desta comédia kamikaze, que lida com a acidez do humor despertado pela proximidade da morte, que o prolongamento da vida se encarregará de revelar ser produto de uma natureza cínica e solitária não inteiramente incapaz de experimentar a pequena redenção. A troca de papéis da última cena é disso exemplo, e o corolário de um filme inteligente e divertido. O menos “perfeito” (porque truncado, apesar da sua duração de mais de duas horas) mas o mais complexo e polimórfico trabalho de Judd Apatow.

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